domingo, 30 de agosto de 2015

Vozes

“Desde criança eu ouço vozes, já me habituei a elas cochichando no meu ouvido, e pelas pessoas não aceitarem isso muito bem acabei, com o tempo, guardando elas apenas para mim. Por mais que me considerassem louco, durante minha adolescência sempre tive as vozes como um dom, algo que recebi por ser especial, um escolhido, e por esse motivo sempre fui um pouco recluso, diria até excluído do restante da escola, não me importava, passava tardes inteiras conversando com o nada. Adorava ouvir as histórias que eles me contavam, como sabiam tudo sobre o mundo.
Bom, fui levando minha vida, me mudei para cidade grande, tinha um bom emprego, esposa e filhos e os sussurros já não eram mais tão frequentes, na verdade apareciam cada vez com mais raridade, tudo isso mudou completamente naquela tarde chuvosa de domingo. Entrei no carro com a família rumo a uma confraternização dos amigos de faculdade, fazíamos isso todo mês, mas nas outras vezes não chovia tão forte, nas outras vezes eu não estava tão bêbado às cinco da tarde, nas outras vezes o carro não capotou ribanceira abaixo....
Acordei três dias depois, em uma cama de hospital, e lá mesmo fiquei sabendo que o enterro da minha mulher e dos meus dois filhos tinha acontecido no dia anterior, que todas as pessoas com quem eu me importava no mundo tinham morrido e nem o direito de me despedir foi me dado. Depois de algum tempo pude enfim voltar para casa, um lugar frio e vazio, nada muito diferente do que eu estava sentindo.
As vozes foram aos poucos voltando, acho que de alguma forma para me reconfortar, mas estavam diferentes, eram presenças mais perceptíveis, e no meio dos cochichos eu reconheci duas presenças, elas nunca tinham falado ao meu ouvido, mas de alguma forma eu sabia que elas sempre estiveram ali, participando de cada momento da minha vida até então, mesmo que sempre caladas, quietas.
A essas dei o nome de Éter e Érebo, a primeira emanava luz, e me transmitia calma e felicidade, a segunda por sua vez era sombra, e por mais que sua energia me fizesse mal era algo que eu gostava, que me conquistava de uma forma que eu não conseguia explicar. Apostos em meu ombro eles passaram a regular o meu ser e habitar minha alma.
Depois de alguns meses voltei para minha cidade no interior, morar lá parecia ser a melhor solução para fugir das lembranças e pesadelos que minha antiga casa trazia. Por mais que achasse que teria sido uma decisão só minha, descobriria depois que eles me queriam lá, era chegada a hora de cumprir minha missão.
Desde que cheguei à cidade tenho percebido algo estranho, não se via ninguém nas ruas, e as poucas pessoas com quem cruzava pareciam vazias, como se fossem apenas manequins. Nunca fui de muitos amigos, então passei a maior parte dos meus dias em casa, lendo e conversando com os seres que ali habitavam, os mesmos que me contavam histórias quando criança, e agora me falavam sobre cada pessoa daquela pequena cidade, eu nunca fui de me surpreender com o que diziam, muito menos de levar a sério, mas tudo aquilo começava a me assustar, se fosse verdade ali não habitavam mais humanos, apenas seres sem alma a espera Dele. Dele quem? Não obtive respostas, deveria ir embora dali na mesma hora, seria o que qualquer um faria, mas me disseram que eu teria que ficar.
Dia após dia eu ficava mais paranoico, não saía de casa nem para abastecer a geladeira, não iria correr o risco de ser pego ou algo do tipo, eu precisava descobrir o que estava acontecendo. No meu antigo quarto fui atrás de algo que pudesse me guiar, então encontrei desenhos que eu não lembrava de ter feito, cartas que eu não lembrava de ter escrito, e todas diziam a mesma coisa “Ele está chegando” e que a minha vida toda as vozes na verdade estariam me treinando para esse momento. Ouço um ruído no canto do quarto e me viro, aos olhos não há nada, mas eu sei que ele está ali. Érebo, um calafrio, apenas uma presença, apenas escuridão. E pela primeira vez pude conversar com uma de minhas vozes, não na minha cabeça, mas frente a frente.
– Quem é Ele? – perguntei, mesmo temendo a resposta.

– Se eu sei quem ele é, você sabe quem ele é, afinal eu sou parte da sua existência. – respondeu, com uma voz gélida que parecia me atravessar como um punhal.

E eu realmente sabia, mas preferia não acreditar, era mais fácil negar e tentar usar a razão, mas torna-se meio difícil se apoiar na razão quando se tem vozes morando em sua cabeça.

– Bom, vou considerar que você realmente não saiba. – continuou, agora se aproximando e me fazendo prender a respiração – Todas as pessoas vem a esse mundo com um propósito, algumas apenas de conseguirem ser felizes, outras, um pouco mais nobres, de fazer os outros felizes, ainda há aqueles que estão aqui apenas para destruir suas vidas e a de todos que o cercam. Já você, digamos que tem algo mais específico, uma missão...

– E qual seria essa missão?

Então ele com uma risada espetacularmente macabra respondeu. – Matar o anticristo, o que mais seria?

Dizendo isso ele foi caminhando lentamente em minha direção, e novamente ele fazia parte de mim, então eu sabia o que fazer.
Saindo da casa pude ouvir Éter chamando por meu nome, implorando que eu ficasse, mas eu já havia sido arrebatado, não havia mais volta. Nas colinas que contornavam a cidade eu pude o ver caindo, um lindo anjo coberto por sangue. E a minha volta uma procissão se formava, enquanto a besta agonizava, seu nome era entoado a uma só voz.
E então uma marcha se formou, todos os corpos sem alma caminhando para se oferecer ao falso Deus, a ruína do mundo. Sob meus pés posso ouvir as chamas gritando por seus nomes. Não há mais volta, todos estão condenados e então eu sei o que deve ser feito, em meu ouvido todos sussurram.

Quando amanhece tudo está bem, eu caminho por entre os corpos iluminados pela aurora, com a faca empunhada em uma das mãos e o terço na outra vou em direção a Ele. Chegam às viaturas, os jornais noticiando a chacina, e no final da rua esperando minha sentença, seguro em meus braços coberta de sangue, a criança estripada, o anticristo morto e mandado de volta ao inferno por minhas mãos.

Sou levado algemado, aos gritos de “assassino” e “monstro”, não entendem o que aconteceu ali e acham que eu sou louco, eu tentei alertar a todos, mas foi em vão. Hoje caminhando pelo corredor da morte eu chego ao fim da minha vida, mas cumpri minha missão, o fim está chegando, não digam que eu não avisei!”

Esta foi a carta escrita, antes de sua morte na cadeira elétrica, pelo assassino em série que esfaqueou e matou mais de 20 pessoas em um evento que ficou conhecido como A Procissão Vermelha. Gravado em sua lápide, ecoando por toda eternidade, podemos entender as vozes que o perturbavam “Tem um maníaco lá fora, e ele mora na minha mente”.